A indústria de jogos de fortuna passa por momento ímpar: vários países, de todos os continentes, estão revendo suas políticas e marcos regulatórios sobre o setor.
As razões para o novo balanço são muitas, não necessariamente coordenadas, mas oportunamente congruentes: estagnação do mercado de jogos europeu, emergência de grupos políticos liberais, mudanças de comportamento da população, Internet, crises econômicas, revisão fiscal, políticas de contenção de danos, combate a lavagem de dinheiro, arbitragem regulatória, potencialidades de desenvolvimento econômico. Recentemente, incluem-se os impactos do novo coronavírus, a queda do turismo e a atropelada digitalização dos negócios, que afetaram também loterias, casas de aposta, casinos, bingos e hotelaria.
Os Estados Unidos atravessaram um complexo emaranhado de decisões e leis envolvendo disputas judiciais na Suprema Corte sobre competências de estados e Congresso para viabilizar, em 2018, a regulamentação estadual de apostas esportivas. Estados, operadores e ligas esportivas já se organizam para dividir o bolo e instituir mecanismos de integridade.
Atualizações normativas desde 2015 formalizaram o jogo online e tornaram a Colômbia um dos mercados mais flexíveis para apostas por meio da Internet na América Latina.
No Reino Unido, a Lei de Apostas de 2014 passou a obrigar que operadores remotos adquiram licenças no país e paguem tributos localmente para oferecer serviços aos clientes britânicos.
Na Alemanha, uma lei federal entra em vigor em 2021, legalizando casinos, apostas esportivas, regulamentando a publicidade e combatendo o mercado ilegal.
Em novembro, um Decreto Real do Conselho de Ministros passou a regular, pela primeira vez, a publicidade do setor de apostas online e jogos de fortuna na Espanha, com foco em restringir campanhas na internet e ligas esportivas.
Em 2009, a Rússia criou quatro zonas especiais para operação de casinos, e recentemente anunciou que a quinta, a “Costa Dourada” na Crimeia, estará operacional em dois anos. Em 2019, o governo ratificou regras para jogos online, por meio de apostas interativas.
A Comissão Jurídica da Índia, órgão de governo para debater reformas legislativas, emitiu um impactante (e controverso) relatório em 2018 recomendando que a regulação efetiva restaria como única opção viável para se combater o mercado ilegal, ante a impossibilidade de banimento total ao jogo.
A África do Sul aprovou sua lei geral em 2004 e tem sido pressionada a legalizar casinos online. A autoridade reguladora reafirmou durante a pandemia que apostas esportivas ainda são a única modalidade autorizada a operar via Internet.
O conselho de auto-regulamentação publicitária da Nova Zelândia editou novas regras do setor para proteger crianças e audiências vulneráveis. Em meio a disputas globais, o novo código de conduta de 2019 afirmou que lootboxes não são consideradas jogos de fortuna, para fins publicitários.
Há várias referências que não podemos deixar escapar na formulação de políticas públicas e regulação do setor no Brasil.
Sejamos explícitos: não existe jogo legalizado sem correspondente organização burocrática.
Idealmente, sob o direito brasileiro, teríamos uma autarquia especial, que faria correspondência ao que se vê em comissões e autoridades pelo mundo: em Las Vegas (Nevada Gaming Control Board), nos territórios de povos nativos dos Estados Unidos (National Indian Gaming Commission), em território Mohawk no Canadá (Kahnawake Gaming Commission), nas Bahamas (Gaming Board for the Bahamas), na Holanda (Netherlands Gaming Authority), em Malta (Malta Gaming Authority), no Reino Unido (Gambling Commission), na África do Sul (National Gaming Board), na Coreia do Sul (National Gambling Control Commission), em Macau (Macau Gaming Inspeciton and Coordination Bureau).
O impasse político-administrativo de se implementar estrutura proporcional no governo federal já foi narrado em outro texto nesta coluna (“Refaçam suas apostas”).
Na configuração atual, ainda não há na administração direta ou indireta brasileira estruturas que exerçam plenamente as funções de regulador central, notadamente para modalidades emergentes. Por vocação, experiência e talento, a Subsecretaria de Prêmios e Sorteios da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (SECAP) do Ministério da Economia é quem mais se aproxima em âmbito federal.
Minutas de Decretos de 2019 e 2020 que regulamentariam as apostas esportivas no País, por decorrência da Lei nº 13.756/2018, previam o recrudescimento de estrutura da SECAP, aumento de pessoal e rearranjo nas rotinas da equipe especializada no Ministério da Economia (ou órgão que o suceder). Esse incremento é indispensável para se viabilizarem as obrigações de homologação, normatização, supervisão e fiscalização da modalidade, funções típicas de um regulador.
Em verdade, o fortalecimento e autonomia de um regulador é indispensável ao refinamento do diálogo institucional sobre todas as modalidades de jogos tradicionais e emergentes (casinos, bingos, bicho, loterias, e-sports, sweepstakes) com jogadores, investidores, órgãos de controle e agentes internacionais.
Mesmo com estrutura limitada, o Congresso e as áreas técnicas do Executivo federal têm dado importantes sinais de que se apoiam na opinião de especialistas, mercado e reguladores estrangeiros sobre como implementar um marco normativo adequado para o País.
Em 2021, o governo tem a oportunidade de materializar essa sua leitura do cenário brasileiro e internacional por meio da regulamentação das apostas esportivas e da gestão do novo arranjo do mercado de loterias estaduais. A ação diligente e o alinhamento a práticas setoriais contemporâneas reduziriam incertezas sobre se o mercado brasileiro é mesmo o filão enunciado globalmente.
Os interessados seguem o jogo atentos, atuantes e atualizados.
Matéria originalmente postada no Estadão Online