Por Thiago Veloso
A decisão do TST sobre horas extras para comissionistas no caso de motorista de caminhão reflete a importância dos detalhes e a necessidade de adaptar precedentes jurídicos.
Ainda no início deste segundo semestre de 2024, interessante questão foi objeto de julgamento no Subseção 1 Especializada em Direito Individual.
A discussão era sobre a aplicabilidade do adicional previsto na súmula 340 do TST para o trabalho em horas extras de empregado comissionista (Proc. RRAg – 1487-24.2019.5.17.07).
Vale lembrar que a mencionada súmula dispõe que
Comissionista. Hora extras.
O empregado, sujeito a controle de horário, remunerado à base de comissões, tem direito ao adicional de, no mínimo, 50% pelo trabalho em horas extras, calculado sobre o valor-hora das comissões recebidas no mês, considerando-se como divisor o número de horas efetivamente trabalhadas. Observação (nova redação) – Res. 121/03, DJ 19, 20 e 21.11.03
A referida súmula, portanto, aduz que para o empregado comissionista puro não se paga a hora extraordinária, pois ela já é remunerada pelas comissões recebidas em razão do labor extra, ressalvando, contudo, o direito ao adicional.
No caso dos autos, era incontroverso que o empregado era motorista de caminhão, sujeito à controle de horário e remunerado exclusivamente à base de comissões, mas, ainda assim, prevaleceu o entendimento de que ele não teria o direito ao pagamento apenas do adicional pelas horas extras prestadas.
Mas por qual motivo que assim decidiu a subseção uniformizadora do TST?
Pois bem, a peculiaridade do processo residia no fato de o empregado ser remunerado por comissões calculadas sobre o valor da carga transportada, e não pelo número de horas gastas no frete.
É um detalhe, mas pela nossa experiência, parafraseando Ludwig Mies van der Rohe, “o êxito está nos detalhes”.
No âmbito da turma, ao mencionado detalhe não foi dado grande valor, já que, segundo ela, a jurisprudência da Corte era no sentido de ser aplicável a súmula 340 “também aos motoristas de caminhão remunerados exclusivamente por meio de comissões, as quais são calculadas sobre o valor do frete ou da carga transportada”.
É aí que está a reflexão que gostaríamos de trazer: Deixou-se de analisar a relevância de um específico fundamento, um detalhe, apenas porque haveria jurisprudência genérica sedimentada no Tribunal (stare decisis).
Já no âmbito da turma, contudo, houve divergência.
No referido voto vencido, o magistrado apontou não só a inexistência de jurisprudência pacífica o suficiente para resolver a demanda, como também analisou o específico fundamento acerca da forma de remuneração do motorista de caminhão no caso em concreto.
Decidiu, ao fazê-lo, pela existência de uma distinção entre o caso em concreto e a súmula 340 do TST.
Duas foram as vias utilizadas pelo julgador para assim decidir, ainda que vencido:
Analisou a origem e a extensão do verbete sumular, concluindo que ele “se aplica aos casos em que o salário está ligado à produtividade do empregado resultando em remunerações variáveis ao longo da contratualidade”, pois “nos termos da referida súmula, o reclamante fará jus somente ao adicional de 50% sobre as horas extraordinárias, uma vez que o tempo trabalhado em acréscimo já se encontra remunerado pelas comissões auferidas, sendo necessário que o labor extraordinário ocorra na função que motivou o pagamento da comissão”;
Refletiu sobre a específica particularidade do caso em concreto e seus efeitos:
“A comissão é uma forma de salário variável. O importante é notar que não é da essência da comissão o seu cálculo com base no valor da transação (ou a mercadoria negociada pelo vendedor, por exemplo)”
“No caso dos autos, no entanto, é incontroverso que a base de cálculo da comissão era o valor da carga, que resultava do cômputo da rota e do preço do frete, ambos determinados pela empresa.
Logo, conclui-se que se existisse variação na jornada considerando as diferentes rotas predefinidas pela empresa, não haveria diferença no montante recebido no final do mês, afastando-se, consequentemente, a aplicação da súmula 340 do TST ao caso em análise”.
Foram citados, no voto vencido, precedentes de outras turmas envolvendo a mesma reclamada e, portanto, abrangendo sua específica situação.
Interpostos embargos à SBDI pela empresa que, inicialmente, não foram admitidos.
Em sede de Agravo, no entanto, a questão chegou e foi julgada pelo órgão uniformizador de jurisprudência, que lhe deu provimento, bem como aos embargos respectivos, para fixar o entendimento de que a súmula 340 seria inaplicável a específica hipótese dos autos.
Na subseção foi, então, efetivamente analisado se o “detalhe” justificava, ou não, uma distinção com a hipótese prevista na súmula 340, prevalecendo o entendimento de ser inaplicável a referida súmula ao caso em concreto (distinguish).
Isso porque a referida súmula busca assegurar a percepção do adicional para a situação em que o empregado comissionista puro, ao trabalhar em horas extraordinárias, aumenta sua própria remuneração, por meio das comissões percebidas nessas horas. O empregado comissionista puro que recebe comissões pelo labor prestado na nona hora do dia, tem paga essa nona hora com a comissão recebida nela, mas não o adicional pelo serviço extraordinário e, somente por isso, existe a multicitada súmula 340.
Já o motorista que percebe comissão com base na mercadoria transportada, não tem aumento em sua comissão se trabalhar na nona hora de seu dia e, por isso, segundo o entendimento prevalente na SBDI, é inaplicável a súmula 340.
As hipóteses são diferentes. Foi o que disse a Subseção.
Um dos votos divergentes expôs, com clareza, que a discussão era sobre a forma e a validade de uma remuneração diversa do modelo tradicional. É que a comissão era devida, no caso em concreto, por tarefa, independentemente do tempo gasto para tanto. A unidade de tempo, portanto, foi tida como irrelevante na composição da remuneração do empregado.
Aqui, à par da matéria de mérito que se discutia, o importante é notar que situações diversas demandam soluções diferentes.
O fato é que, nos tribunais superiores, cada detalhe faz a diferença. A atuação especializada não é apenas um diferencial, mas uma verdadeira necessidade. É fundamental que o advogado conheça profundamente o processo, atentando-se a todas as nuances e peculiaridades do caso em concreto. Muitas vezes, o sucesso de uma demanda depende da capacidade de demonstrar que aquele caso específico não é exatamente igual a outros já julgados, ressaltando suas particularidades e, assim, evitando a aplicação automática de um precedente que pode não ser adequado.
Por outro lado, o papel do magistrado, nesse sentido, é essencial: Ele deve interpretar a norma à luz dos detalhes trazidos no processo, refletindo se a aplicação direta da lei ou do precedente é a mais justa ou se há elementos que indicam a necessidade de uma abordagem distinta.
Neste ponto, ainda outra consideração é importante: a de que também é necessário aprofundar as discussões nos Tribunais Superiores para a definição de teses jurídicas, ampliando o debate em prol da uniformização da jurisprudência de mérito.
Isso porque, no caso em concreto, a divergência ponderou que a unidade de tempo compunha, direta ou indireta, o valor pago pelo frete. O elemento fático (outro detalhe relevante), parece ter sido superado em razão de uma preocupação social em mitigar o labor extraordinário nas rodovias brasileiras.
A preocupação, embora louvável, parece-nos privilegiar um modelo celetista padrão de remuneração, buscando coibir outras formas de negociação. Nesse sentido, há de se indagar se a Constituição privilegia o sistema de remuneração por hora em detrimento de outros, e quais os limites da ponderação com outras disposições constitucionais, tal como a livre iniciativa, discussão que pareceu não ter ocorrido no âmbito do Tribunal Superior.
O que se diz é que a própria discussão acerca do que é a “proteção do trabalhador” neste ou naquele litigio merece ser amplamente discutida, pois abrange não só a remuneração direta daquele específico empregado, mas também o direito de vários outros e a própria sustentabilidade do modelo de negócio, tudo isso em uma relação circular de dependência.
Neste sentido, do ponto de proteção ao trabalhador, a decisão do TST pode acabar forçando o abandono total do modelo celetista, especialmente considerando a lei do transporte autônomo de cargas (lei 11.442/07). Isto, ou a empresa deve se acautelar por meio de previsão expressa em norma coletiva, que preveja expressamente apenas o pagamento do adicional ao motorista comissionista.
O direito do empregado anda de mão dada com o sucesso da empresa. Dissociar um do outro, colocando-os em locais antagônicos, acaba por repetir um modelo marxista que talvez não se adapte aos nossos tempos. E, se adapta, deve, ao menos, existir clara fundamentação que considere o direito de todas as partes envolvidas na ação, limitando-se a restringir qualquer direito na menor medida possível.
A última consideração que se faz, então, é a de que na defesa do trabalhador, somos guardiões de seus direitos, mas também intérpretes de suas realidades. Uma coisa não se dissocia da outra, sob pena de se tornar ainda atual a advertência de Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.
Publicado originalmente no Migalhas.